quarta-feira, 2 de junho de 2010

Trecho de uma ficção...

A cabeça que me pertence está enterrada na desordem do meu espírito. O antigo território da razão foi abaixo. Onde posso encontrar lugar para acomodá-la agora? Ela está vazia e o nexo que encontraram para ela já não parece fazer sentido. È o testamento de um suicida? Não. Fui eu que mergulhei abundantemente em busca do elo com destino a saída. Não achei e estou exausto. Extenuado. Meu corpo envolto em areia fina está faminto por afeto e descanso. Meu tempo ainda não se esgotou, devo seguir esta senda espinhosa concedida a mim.
Ela tem cabelos de fogo, mãos de colher, boca violácea. Segura-me pelas mãos delicadamente e vislumbro um roseiral repleto de rosas multicoloridas. Penetramos neste cenário de estranha beleza. As roseiras têm uma característica incomum: são gigantescas com cerca de 20 metros. Dançamos ininterruptamente por um longo tempo, que não consigo medir. A mulher suspira palavras em meu ouvido: palavras com sonoridade doce e cheiro de jasmim. Repentinamente o cenário muda: o chão é feito de serpentes vermelhas e pretas e elas estão vivas. Em pânico, subo em uma árvore carmim, tão alta. Escondo-me das cobras. Estranhamente os répteis não vão ao meu encontro. A árvore parece infindável. E noto uma habilidade em mim, nesta escalada, que desconhecia. Aquela estranha diva desaparece assim como apareceu. Vejo-me em outro lugar, caminhando em um local com uma luz tão incandescente, e torno-me clarividente. Vejo a frente de meu nariz, que está no lugar errado, uma densa bruma acobreada. Caminho mais tranqüilo e sinto a suave ventania, que me diz coisas em uma língua repleta de açúcar. Parece o paraíso, abundante em flores azuis e brisa refrescante. Pessoas com olhar doce contemplam minha passagem, mas não consigo emitir nenhum som de minha boca. È como se fosse uma imagem onírica. Quando percebo estou sangrando. Não sinto nenhuma dor. O sangue que escorre é brilhante. Há partículas de espinho rosado dispersas pelo meu corpo, por isso ele sangra. Confuso e assustado corro desesperadamente em busca de uma saída.
Sem entender nada, agora permaneço estático, lívido, com os lábios azulados e ensangüentados. Isso porque tem alguém do meu lado que me adverte sobre meu estado preocupante. Estou no meio de uma avenida tumultuada em pleno congestionamento. Estou mouco e nem sequer tinha percebido a realidade tão banal. Boom!
Que lugar é esse? Sinto que estou tonto e meus sentidos estão meio desordenados. Um cara vestido de branco fala algumas coisas. Parecem umas palavras de ordem. Não entendo nada. Agora retomo um pouco meus sentidos, minha visão é iluminada. Sou informado de que sofri um acidente. Bati com a cabeça e algo mais... Em tempo recorde meus sentidos se plugam. Sinto dor lancinante nas pernas, na cabeça e no peito. Agora entendi o que houve comigo. É tudo muito esquisito, estava bem e de repente, acordo mal.
Numa olhada rápida, vejo que estou ligado a uma parafernália em todo meu corpo. Ai... Os espinhos foram substituídos por perfurantes agulhas. Uma minúscula mangueirinha envia um líquido vermelho vivo para dentro de minhas veias. Toda hora vem alguém para despertar a lembrança de meu deprimente estado atual. Mexe de um lado, ajeita uma coisa ali, outra aqui. Ai. Chega! Tenho dor.
Olho minhas pernas, que me tornavam livre. Vejo uma imagem estupidamente feia: uma avenida foi aberta em minha perna direita e uma ruela na esquerda. Às margens dela um rio caudaloso de águas de cor vermelha com cheiro de carne crua. Fui transformado num corte de carne retalhada. Estou pronto para ser vendido num açougue. Estou podre e pronto para ser devorado por bejes vermes. Ah! Que horror!
Vem chegando gente aí. Suas caras não estão boas. A informação é a seguinte:
-- Você foi vítima de atropelamento. Ficou em coma por duas semanas. Teve fraturas em várias partes do corpo. A mais grave foi nas pernas. Fratura exposta. Foi operado.
Já estava assustado. E entrei em pânico quando disseram:
-- Vai ser operado amanhã.
-- Por quê? – eu tentei perguntar. Mas estava com um tubo enorme na minha boca.
A resposta foi rápida e sem delongas.
-- Tem um coágulo no cérebro.
Quem decidiu sobre tudo isso? Perguntava eu pasmo para mim mesmo. Agora não sou mais dono de mim? De quem é esse corpo? Foi vendido para o açougue? Aquela era minha condição. Perdi minha autonomia, meu livre arbítrio. E não sei mais o que...
Diante do inevitável eu chorei compulsivamente. Meu corpo doía mais e mais. Vieram duas enfermeiras. Uma era enorme, larga e tinha um braço forte. Essa me segurou enquanto, a outra impiedosa injetava um líquido esbranquiçado em minha mangueirinha. A gente não pode nem se manifestar aqui nessa joça de lugar.
Eu não pude esboçar reação. Nunca fui um gigante, mas também não tenho um corpo franzino. Diante daquela Frankstein cedi. De imediato chorei como um bebê. Tinha medo e estava na companhia de desconhecidos. Meu desejo era que Manu segurasse minhas mãos e dissesse apenas que acordara de um pesadelo. Lentamente tudo foi escurecendo.
********

A velocidade deste mundo me consome. Não sou adaptado a viver aqui. Fico incomodado. Sou inconformado. É... As coisas existem e prescindem do pensamento. O que existe, existe de se ver, bem disse Guimarães Rosa. Minha realidade é essa: estou aqui preso a uma cama de hospital. E agora como vai ser? Até bem pouco tempo, nem sei quanto, minha realidade era um devaneio.
Hoje solenemente me visto de luto para celebrar uma nova etapa de minha vida. A morte de um passado descompromissado e inconseqüente em muitos aspectos. Eu caminhei com suavidade e desespero, pisando levemente em cacos de vidros espalhados delicadamente ao longo da estrada que ao fim bifurcava. Indeciso, escolhi o lado errado. A consequência não pude evitar. Meu destino conheço de cor.
Ultimamente por onde trafego o sinal está fechado. Estou em queda. Eu me vejo caindo, caindo, caindo... Já estou no abismo sem fim e impiedoso. Meu fim se aproxima, mas não dou trégua e esperneio inconformado. O que será que me espera lá embaixo? Será o inferno? Já que o paraíso é para o alto. Ou não?
Tudo é muito vago e impreciso. Não tenho o controle sobre a vida. Daqui em diante ficarei à deriva, me abandonarei. É melhor. Viver sem expectativa sinto que é o caminho para mim neste instante da vida. Vou escrevendo e vivendo minha própria história à custa de muito sangue e lágrimas. O passado me ancora nesta corda bamba que é o futuro. Ao menos sei escolher os lugares que desviarei. Esta é a razão de minha calma, ao menos temporária.
Sinto uma falta de capacidade de adaptação às regras impostas, às convenções, a tudo o que é embalado com a belíssima e aterrorizante promessa de felicidade. O mundo cartesiano me incomoda. A felicidade vendida às pessoas me incomoda, o sucesso conformado me incomoda. O que consiste a felicidade neste mundo? Ganhar muito dinheiro, ter um carro top de linha (ou trocá-lo a cada ano), morar bem, etc. Tudo falácia hipócrita! As conversas do senso-comum giram em torno desse ideal, dessas coisas. É a coisificação da vida. Isso é monstruoso! É opressor! Nivela as pessoas a viver mediocremente, como máquinas a procura de coisas, escravizadas pelo consumo. Se estiverem fora do script serão infelizes. O assustador é que uma multidão acredita nesta ideia. Isso é martelado a todo instante na cabeça de todos nós, pelas sedutoras propagandas em suas múltiplas facetas (outdoors, revistas, jornais). Embora a mais perigosa seja a tevê. Nossa amiga de todas as horas. Quem de nós, ao chegar à casa sozinho, não liga a tevê, com a finalidade inconsciente, de preencher o vazio de nossa mediocridade com coisas inúteis e sem sentido. Eu fiz isso muitas vezes porque não queria ouvir a mim mesmo. Neguei a mim próprio, centenas de vezes. Tornei-me enfraquecido. Há momentos em que desejamos nos esquecer. Viver a vida de outro, mesmo que seja por minutos. A TV é o analista mais eficaz e gratuito. Eu esqueci de mim, do meu eu. Estava quase acreditando que não era nada, quando acordei. Encontrei na imaginação o substrato de minha existência!
Poucas coisas me trazem paz, leveza, consolo. Sinto como se uma agulha pontiaguda me incomodasse o tempo todo. Coisas simples me fazem sentir alegria. Como por exemplo: ir ao cinema, assistir um filme desafiador à inteligência e depois discuti-lo longamente de preferência com um amigo. Fiquei devaneando por madrugadas adentro com filmes, espetáculos... Sentado num balanço ficava rindo sozinho de mim mesmo ou de uma cena de meu passado, guardada a sete chaves na memória. São coisas inúteis, que trazem prazer pela vida, pela celebração da alegria fugaz e gloriosa!
Não sou filósofo, tampouco profeta de meu tempo. Detestaria ser tomado como exemplo, porque não preconizo a perfeição. Nem estou à procura dela. Minhas ideias foram tidas como desequilibradas, loucas e quiseram me banir da vida social saudável. Resisti selvagemente e minha vitória é uma conquista diária, temporária. Eu sei para onde vou. Tenho certeza que as ilusões vendidas à humanidade, se dissiparão na hora certa, embora desconheça tal hora.
A arrogância consiste na pretensão de pensar que estou no controle de tudo o que me cerca. A cada dia a vida me mostra que esta ideia é desprovida de sentido, inútil e atrapalha na construção de meu novo mundo. Minha humildade é uma criança pequena que pulsa dentro de mim. Por isso, dia a dia, assento um tijolo de cada vez como quem reconstrói uma habitação no inóspito deserto, contando com a tempestade de areia no dia seguinte.
Tive de destruir meu mundinho confortável, conhecido e muitas vezes, perigoso. Desencantado que estava com a realidade, naveguei águas intranqüilas e turbulentas tentando alcançar o reino dos encantados. Incessantemente busquei, em poucos instantes lá vivi. Desfrutei de uma leveza tão ampla, que meu corpo levitou. Não sei se foi real, tampouco me interessa perscrutar a veracidade dessa vivência fugidia. Pude sentir por centésimos de segundo que essa realidade, na qual acreditamos piamente, não é tão verdadeira assim. Tudo está vinculado a nossa percepção. Creio que minha percepção enormemente ampliada, de forma artificial, atingiu o cume. Mesmos por caminhos tortuosos atingi durante o período de um piscar de olhos esse outro tempo. Confesso que quando estive lá consegui tocar a delicadeza das remotas regiões, talvez presente dentro de minha mente. Ou quem sabe em outro tempo. Fiquei tão encantado que fui rendido por essa teia e pelo desejo de permanência perene. Um dia espero poder ter um encontro com essa realidade em minha eternidade.
Vale dizer que andei por vales obscuros e caminhei pela corda bamba sem rede de proteção. Sempre com a finalidade de rever o apogeu esplendoroso. O paraíso perdido, jamais encontrado. Na mesma medida de minha procura pelo reino dos encantados, pela magia de acolhimento e suavidade, encontrei na outra porta a torturante escravização do vício. Fui impregnado por substâncias tóxicas, (umas alucinógenas e outras com efeitos diversos), algumas ditas ilegais, outras nem tanto. Foram inúmeras. Todas resultaram em prazer imediato, embora apenas uma tenha fincado seus tentáculos de forma inexorável em meu corpo. A desordem se instalou dentro de meu ser, então pude compreender a delicadeza da existência. Uma combinação de fragilidade física e mental foi a gota d água para tornar evidente a tênue fronteira estabelecida entre vida e morte. Cruzei a fronteira e voltei assustado, como uma criança esquecida pela família numa viagem de férias. Morri muitas vezes e tive a oportunidade de renascer. A vida me foi concedida novamente por inúmeras vezes. Abusei dessa dávida. Reencontrei com o sombrio, coberto de cinzentas nuvens, com longas unhas pontiagudas, disposto a empreender força descomunal com o intuito de me ver esquecido pelo próprio esquecimento e ser lentamente sugado – por um terrível aspirador de pó de almas – para submergir, quase afogado, rumo a superfície.

Lembro-me claramente de meu primeiro colapso. Posso descrevê-lo: uma teia intrincada me enredou de tal forma, de mansinho, suavemente, mas de maneira densa e tão impiedosa. Um suave veneno, dulcíssimo e dono de um poder inebriante. Ficava exultante e depois anestesiado de um jeito, que parecia ter perdido meu corpo. Depois me sentia como se estivesse do lado avesso da existência. Depressão, coriza e o horror transfigurado frente aos meus olhos. Em pânico, desejava ardentemente, à custa de qualquer preço, ser picado novamente pelo doce veneno da crueldade. Sucumbi dezenas de vezes. Quebrei quase todos os objetos de meu apartamento, pensava estar sendo perseguidos por coisas absurdas. A beleza da inocência de um rapaz, que achava poder brincar de ser poderoso e submergir fortemente, enfim despencou de um desfiladeiro altíssimo. Essa desconstrução de rapaz em homem foi uma queda lenta, homeopática e tremendamente pungente. Essa história ainda não teve ponto final. É a história construída à base de caminhos errantes, confusos e mal iluminados.
Tive como moradia hospícios de cidades inóspitas e mal cheirosas. Vivi clandestinamente e perdi a noção de afeição. Sem paradeiro, minha mente foi pirando vagarosamente. Tenho lacunas dentro de mim e, neste instante, não tenho capacidade para preenchê-las. Meus heróis são ébrios, loucos, todos inseguros do dia seguinte. A vitória deles é a certeza de que tudo é incerto, num mundo sem referências e despojado de sentido. Eles são o vômito de uma sociedade atroz e condenável. Aquilo que é posto debaixo de caríssimos tapetes persa, sem ninguém com ousadia para descobrir. Eles não gritam por socorro porque sua existência é esquecida por eles próprios. Eles são o ouro em pó porque são úteis para a humanidade, cuja feição é semelhante a um monstro inumano. São o lixo e o exemplo do fracasso humano. Sua exclusão é importante para a manutenção do status quo, do establisment, daquilo que convém a todos os ditos civilizados. Tenho afinidade com eles, pois minha lucidez foi conseguida secretamente. Não posso proclamá-la senão sou tachado como louco e doente (sussurro para alertar: outro reino existe e a felicidade vive lá sentada em sua cadeira real).
Não me julgo superior, porque sou hipócrita, como muitos outros, embora seja despretensiosamente honesto com meus defeitos. Já fui canalha, covarde, atroz, devasso e de caráter duvidoso. Hoje ainda percebo em mim marcadamente a lassidão, o orgulho, a inveja, a cobiça, a ira, a luxúria e incontáveis coisas inconfessáveis. Tenho bastante de joio e pouco de trigo. Não tenho pudor de revelar minha pouca virtude. Meu talento sempre foi o de mostrar meus bichos numa tacada só. Fui odiado por isso. A franqueza é algo insuportável diante da farsa deste teatro social. Quase todas as pessoas são atores de sua existência, sempre trajando um figurino para cada ocasião. Também me incluo neste rol. Embora minha personalidade seja autêntica e assuma riscos a todo instante de ser entendido como desagradável. Viver ao meu lado é como estar numa montanha russa. Sou contraditório e incoerente. Frágil, delicado e, às vezes, impiedoso e cruel.

********

Nenhum comentário:

Postar um comentário