quarta-feira, 2 de junho de 2010

Beirut - Elephant Gun

www.youtube.com/watch?v=N-mqhkuOF7s

Trecho de uma ficção...

A cabeça que me pertence está enterrada na desordem do meu espírito. O antigo território da razão foi abaixo. Onde posso encontrar lugar para acomodá-la agora? Ela está vazia e o nexo que encontraram para ela já não parece fazer sentido. È o testamento de um suicida? Não. Fui eu que mergulhei abundantemente em busca do elo com destino a saída. Não achei e estou exausto. Extenuado. Meu corpo envolto em areia fina está faminto por afeto e descanso. Meu tempo ainda não se esgotou, devo seguir esta senda espinhosa concedida a mim.
Ela tem cabelos de fogo, mãos de colher, boca violácea. Segura-me pelas mãos delicadamente e vislumbro um roseiral repleto de rosas multicoloridas. Penetramos neste cenário de estranha beleza. As roseiras têm uma característica incomum: são gigantescas com cerca de 20 metros. Dançamos ininterruptamente por um longo tempo, que não consigo medir. A mulher suspira palavras em meu ouvido: palavras com sonoridade doce e cheiro de jasmim. Repentinamente o cenário muda: o chão é feito de serpentes vermelhas e pretas e elas estão vivas. Em pânico, subo em uma árvore carmim, tão alta. Escondo-me das cobras. Estranhamente os répteis não vão ao meu encontro. A árvore parece infindável. E noto uma habilidade em mim, nesta escalada, que desconhecia. Aquela estranha diva desaparece assim como apareceu. Vejo-me em outro lugar, caminhando em um local com uma luz tão incandescente, e torno-me clarividente. Vejo a frente de meu nariz, que está no lugar errado, uma densa bruma acobreada. Caminho mais tranqüilo e sinto a suave ventania, que me diz coisas em uma língua repleta de açúcar. Parece o paraíso, abundante em flores azuis e brisa refrescante. Pessoas com olhar doce contemplam minha passagem, mas não consigo emitir nenhum som de minha boca. È como se fosse uma imagem onírica. Quando percebo estou sangrando. Não sinto nenhuma dor. O sangue que escorre é brilhante. Há partículas de espinho rosado dispersas pelo meu corpo, por isso ele sangra. Confuso e assustado corro desesperadamente em busca de uma saída.
Sem entender nada, agora permaneço estático, lívido, com os lábios azulados e ensangüentados. Isso porque tem alguém do meu lado que me adverte sobre meu estado preocupante. Estou no meio de uma avenida tumultuada em pleno congestionamento. Estou mouco e nem sequer tinha percebido a realidade tão banal. Boom!
Que lugar é esse? Sinto que estou tonto e meus sentidos estão meio desordenados. Um cara vestido de branco fala algumas coisas. Parecem umas palavras de ordem. Não entendo nada. Agora retomo um pouco meus sentidos, minha visão é iluminada. Sou informado de que sofri um acidente. Bati com a cabeça e algo mais... Em tempo recorde meus sentidos se plugam. Sinto dor lancinante nas pernas, na cabeça e no peito. Agora entendi o que houve comigo. É tudo muito esquisito, estava bem e de repente, acordo mal.
Numa olhada rápida, vejo que estou ligado a uma parafernália em todo meu corpo. Ai... Os espinhos foram substituídos por perfurantes agulhas. Uma minúscula mangueirinha envia um líquido vermelho vivo para dentro de minhas veias. Toda hora vem alguém para despertar a lembrança de meu deprimente estado atual. Mexe de um lado, ajeita uma coisa ali, outra aqui. Ai. Chega! Tenho dor.
Olho minhas pernas, que me tornavam livre. Vejo uma imagem estupidamente feia: uma avenida foi aberta em minha perna direita e uma ruela na esquerda. Às margens dela um rio caudaloso de águas de cor vermelha com cheiro de carne crua. Fui transformado num corte de carne retalhada. Estou pronto para ser vendido num açougue. Estou podre e pronto para ser devorado por bejes vermes. Ah! Que horror!
Vem chegando gente aí. Suas caras não estão boas. A informação é a seguinte:
-- Você foi vítima de atropelamento. Ficou em coma por duas semanas. Teve fraturas em várias partes do corpo. A mais grave foi nas pernas. Fratura exposta. Foi operado.
Já estava assustado. E entrei em pânico quando disseram:
-- Vai ser operado amanhã.
-- Por quê? – eu tentei perguntar. Mas estava com um tubo enorme na minha boca.
A resposta foi rápida e sem delongas.
-- Tem um coágulo no cérebro.
Quem decidiu sobre tudo isso? Perguntava eu pasmo para mim mesmo. Agora não sou mais dono de mim? De quem é esse corpo? Foi vendido para o açougue? Aquela era minha condição. Perdi minha autonomia, meu livre arbítrio. E não sei mais o que...
Diante do inevitável eu chorei compulsivamente. Meu corpo doía mais e mais. Vieram duas enfermeiras. Uma era enorme, larga e tinha um braço forte. Essa me segurou enquanto, a outra impiedosa injetava um líquido esbranquiçado em minha mangueirinha. A gente não pode nem se manifestar aqui nessa joça de lugar.
Eu não pude esboçar reação. Nunca fui um gigante, mas também não tenho um corpo franzino. Diante daquela Frankstein cedi. De imediato chorei como um bebê. Tinha medo e estava na companhia de desconhecidos. Meu desejo era que Manu segurasse minhas mãos e dissesse apenas que acordara de um pesadelo. Lentamente tudo foi escurecendo.
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A velocidade deste mundo me consome. Não sou adaptado a viver aqui. Fico incomodado. Sou inconformado. É... As coisas existem e prescindem do pensamento. O que existe, existe de se ver, bem disse Guimarães Rosa. Minha realidade é essa: estou aqui preso a uma cama de hospital. E agora como vai ser? Até bem pouco tempo, nem sei quanto, minha realidade era um devaneio.
Hoje solenemente me visto de luto para celebrar uma nova etapa de minha vida. A morte de um passado descompromissado e inconseqüente em muitos aspectos. Eu caminhei com suavidade e desespero, pisando levemente em cacos de vidros espalhados delicadamente ao longo da estrada que ao fim bifurcava. Indeciso, escolhi o lado errado. A consequência não pude evitar. Meu destino conheço de cor.
Ultimamente por onde trafego o sinal está fechado. Estou em queda. Eu me vejo caindo, caindo, caindo... Já estou no abismo sem fim e impiedoso. Meu fim se aproxima, mas não dou trégua e esperneio inconformado. O que será que me espera lá embaixo? Será o inferno? Já que o paraíso é para o alto. Ou não?
Tudo é muito vago e impreciso. Não tenho o controle sobre a vida. Daqui em diante ficarei à deriva, me abandonarei. É melhor. Viver sem expectativa sinto que é o caminho para mim neste instante da vida. Vou escrevendo e vivendo minha própria história à custa de muito sangue e lágrimas. O passado me ancora nesta corda bamba que é o futuro. Ao menos sei escolher os lugares que desviarei. Esta é a razão de minha calma, ao menos temporária.
Sinto uma falta de capacidade de adaptação às regras impostas, às convenções, a tudo o que é embalado com a belíssima e aterrorizante promessa de felicidade. O mundo cartesiano me incomoda. A felicidade vendida às pessoas me incomoda, o sucesso conformado me incomoda. O que consiste a felicidade neste mundo? Ganhar muito dinheiro, ter um carro top de linha (ou trocá-lo a cada ano), morar bem, etc. Tudo falácia hipócrita! As conversas do senso-comum giram em torno desse ideal, dessas coisas. É a coisificação da vida. Isso é monstruoso! É opressor! Nivela as pessoas a viver mediocremente, como máquinas a procura de coisas, escravizadas pelo consumo. Se estiverem fora do script serão infelizes. O assustador é que uma multidão acredita nesta ideia. Isso é martelado a todo instante na cabeça de todos nós, pelas sedutoras propagandas em suas múltiplas facetas (outdoors, revistas, jornais). Embora a mais perigosa seja a tevê. Nossa amiga de todas as horas. Quem de nós, ao chegar à casa sozinho, não liga a tevê, com a finalidade inconsciente, de preencher o vazio de nossa mediocridade com coisas inúteis e sem sentido. Eu fiz isso muitas vezes porque não queria ouvir a mim mesmo. Neguei a mim próprio, centenas de vezes. Tornei-me enfraquecido. Há momentos em que desejamos nos esquecer. Viver a vida de outro, mesmo que seja por minutos. A TV é o analista mais eficaz e gratuito. Eu esqueci de mim, do meu eu. Estava quase acreditando que não era nada, quando acordei. Encontrei na imaginação o substrato de minha existência!
Poucas coisas me trazem paz, leveza, consolo. Sinto como se uma agulha pontiaguda me incomodasse o tempo todo. Coisas simples me fazem sentir alegria. Como por exemplo: ir ao cinema, assistir um filme desafiador à inteligência e depois discuti-lo longamente de preferência com um amigo. Fiquei devaneando por madrugadas adentro com filmes, espetáculos... Sentado num balanço ficava rindo sozinho de mim mesmo ou de uma cena de meu passado, guardada a sete chaves na memória. São coisas inúteis, que trazem prazer pela vida, pela celebração da alegria fugaz e gloriosa!
Não sou filósofo, tampouco profeta de meu tempo. Detestaria ser tomado como exemplo, porque não preconizo a perfeição. Nem estou à procura dela. Minhas ideias foram tidas como desequilibradas, loucas e quiseram me banir da vida social saudável. Resisti selvagemente e minha vitória é uma conquista diária, temporária. Eu sei para onde vou. Tenho certeza que as ilusões vendidas à humanidade, se dissiparão na hora certa, embora desconheça tal hora.
A arrogância consiste na pretensão de pensar que estou no controle de tudo o que me cerca. A cada dia a vida me mostra que esta ideia é desprovida de sentido, inútil e atrapalha na construção de meu novo mundo. Minha humildade é uma criança pequena que pulsa dentro de mim. Por isso, dia a dia, assento um tijolo de cada vez como quem reconstrói uma habitação no inóspito deserto, contando com a tempestade de areia no dia seguinte.
Tive de destruir meu mundinho confortável, conhecido e muitas vezes, perigoso. Desencantado que estava com a realidade, naveguei águas intranqüilas e turbulentas tentando alcançar o reino dos encantados. Incessantemente busquei, em poucos instantes lá vivi. Desfrutei de uma leveza tão ampla, que meu corpo levitou. Não sei se foi real, tampouco me interessa perscrutar a veracidade dessa vivência fugidia. Pude sentir por centésimos de segundo que essa realidade, na qual acreditamos piamente, não é tão verdadeira assim. Tudo está vinculado a nossa percepção. Creio que minha percepção enormemente ampliada, de forma artificial, atingiu o cume. Mesmos por caminhos tortuosos atingi durante o período de um piscar de olhos esse outro tempo. Confesso que quando estive lá consegui tocar a delicadeza das remotas regiões, talvez presente dentro de minha mente. Ou quem sabe em outro tempo. Fiquei tão encantado que fui rendido por essa teia e pelo desejo de permanência perene. Um dia espero poder ter um encontro com essa realidade em minha eternidade.
Vale dizer que andei por vales obscuros e caminhei pela corda bamba sem rede de proteção. Sempre com a finalidade de rever o apogeu esplendoroso. O paraíso perdido, jamais encontrado. Na mesma medida de minha procura pelo reino dos encantados, pela magia de acolhimento e suavidade, encontrei na outra porta a torturante escravização do vício. Fui impregnado por substâncias tóxicas, (umas alucinógenas e outras com efeitos diversos), algumas ditas ilegais, outras nem tanto. Foram inúmeras. Todas resultaram em prazer imediato, embora apenas uma tenha fincado seus tentáculos de forma inexorável em meu corpo. A desordem se instalou dentro de meu ser, então pude compreender a delicadeza da existência. Uma combinação de fragilidade física e mental foi a gota d água para tornar evidente a tênue fronteira estabelecida entre vida e morte. Cruzei a fronteira e voltei assustado, como uma criança esquecida pela família numa viagem de férias. Morri muitas vezes e tive a oportunidade de renascer. A vida me foi concedida novamente por inúmeras vezes. Abusei dessa dávida. Reencontrei com o sombrio, coberto de cinzentas nuvens, com longas unhas pontiagudas, disposto a empreender força descomunal com o intuito de me ver esquecido pelo próprio esquecimento e ser lentamente sugado – por um terrível aspirador de pó de almas – para submergir, quase afogado, rumo a superfície.

Lembro-me claramente de meu primeiro colapso. Posso descrevê-lo: uma teia intrincada me enredou de tal forma, de mansinho, suavemente, mas de maneira densa e tão impiedosa. Um suave veneno, dulcíssimo e dono de um poder inebriante. Ficava exultante e depois anestesiado de um jeito, que parecia ter perdido meu corpo. Depois me sentia como se estivesse do lado avesso da existência. Depressão, coriza e o horror transfigurado frente aos meus olhos. Em pânico, desejava ardentemente, à custa de qualquer preço, ser picado novamente pelo doce veneno da crueldade. Sucumbi dezenas de vezes. Quebrei quase todos os objetos de meu apartamento, pensava estar sendo perseguidos por coisas absurdas. A beleza da inocência de um rapaz, que achava poder brincar de ser poderoso e submergir fortemente, enfim despencou de um desfiladeiro altíssimo. Essa desconstrução de rapaz em homem foi uma queda lenta, homeopática e tremendamente pungente. Essa história ainda não teve ponto final. É a história construída à base de caminhos errantes, confusos e mal iluminados.
Tive como moradia hospícios de cidades inóspitas e mal cheirosas. Vivi clandestinamente e perdi a noção de afeição. Sem paradeiro, minha mente foi pirando vagarosamente. Tenho lacunas dentro de mim e, neste instante, não tenho capacidade para preenchê-las. Meus heróis são ébrios, loucos, todos inseguros do dia seguinte. A vitória deles é a certeza de que tudo é incerto, num mundo sem referências e despojado de sentido. Eles são o vômito de uma sociedade atroz e condenável. Aquilo que é posto debaixo de caríssimos tapetes persa, sem ninguém com ousadia para descobrir. Eles não gritam por socorro porque sua existência é esquecida por eles próprios. Eles são o ouro em pó porque são úteis para a humanidade, cuja feição é semelhante a um monstro inumano. São o lixo e o exemplo do fracasso humano. Sua exclusão é importante para a manutenção do status quo, do establisment, daquilo que convém a todos os ditos civilizados. Tenho afinidade com eles, pois minha lucidez foi conseguida secretamente. Não posso proclamá-la senão sou tachado como louco e doente (sussurro para alertar: outro reino existe e a felicidade vive lá sentada em sua cadeira real).
Não me julgo superior, porque sou hipócrita, como muitos outros, embora seja despretensiosamente honesto com meus defeitos. Já fui canalha, covarde, atroz, devasso e de caráter duvidoso. Hoje ainda percebo em mim marcadamente a lassidão, o orgulho, a inveja, a cobiça, a ira, a luxúria e incontáveis coisas inconfessáveis. Tenho bastante de joio e pouco de trigo. Não tenho pudor de revelar minha pouca virtude. Meu talento sempre foi o de mostrar meus bichos numa tacada só. Fui odiado por isso. A franqueza é algo insuportável diante da farsa deste teatro social. Quase todas as pessoas são atores de sua existência, sempre trajando um figurino para cada ocasião. Também me incluo neste rol. Embora minha personalidade seja autêntica e assuma riscos a todo instante de ser entendido como desagradável. Viver ao meu lado é como estar numa montanha russa. Sou contraditório e incoerente. Frágil, delicado e, às vezes, impiedoso e cruel.

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quinta-feira, 13 de maio de 2010

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Trecho do livro Veneno Anil

Uma coisa que detesto nos outros é o moralismo. Para mim é algo intolerável e falso. Tenho asco. Isso revela o motivo de ter escolhido viver em sentido anti-horário. Fui adepto de uma vida devassa. Anos a fio conheci os paraísos do hedonismo e desfrutei da intimidade de seus personagens: putas, travestis, bissexuais, gays, lésbicas... Todas as minorias, consideradas como escória pelos moralistas de plantão. Repudio esta opinião tão comum. Todos são pessoas e não podemos julgar os pretensos erros de outros, porque também são os nossos. Guardo todos esses seres dentro de mim, eu os embalei em meu colo, ouvi suas lamúrias em meio a garrafas esquecidas, dancei em noites alegres, sobretudo orei em seu colo e pedi proteção. Deles ouvi doces palavras, passeei de mãos dadas por entre o verde cimento e chorei. Intolerantes me classificaram de, “viado”, drogado, alcoólatra entre outros adjetivos, mas nunca chegaram perto de uma definição para mim . Fui rotulado e etiquetado, posto a venda como mercadoria corrompida e imprópria para menores. Era divertido estar no centro do palco. Embora soubesse, que tudo aquilo era desnecessário, porque dentro de mim vivia um cândido menino aprontador e inocente. Apenas estava escondido atrás de um secular baobá - plantado há séculos dentro de mim – mas eram incapazes de vê-lo. Gosto da noite porque é quando o sol cai que podemos nos revelar tal qual somos. Ela foi minha companheira de todas as horas. Tanto as mais alegres, quanto as tristes e melancólicas. Eu tomei porres homéricos regados a uísque, absinto, rock e voltei a ser criança travessa. Em banheiros imundos fiz meu oratório. Coroei de vômito as latrinas limpas no luxo, fétidas na decadência. Andei pelo Sena em noites frias, com as pernas bambas sem saber se seria capaz de voltar para casa. Acho que fui levado por delicadas mãos. A manhã sempre me presenteava com uma dor de cabeça lancinante, nada que um mágico analgésico não pudesse por fim. Voltava contente e impune à mesma vida de desbunde. Foram dias de farra e delírio! Provei todas as oferendas da vida, posso dizer que vivi como um carnavalesco em dia de desfile na avenida. Esfuziante e ansioso. Quase sempre despudoradamente, beijando as fronteiras do desconhecido. Minha experiência errante valeu a pena, fui desconstruído, virado pelo avesso e hoje sou um pouco mais contido. Mas minha cabeça passeia por lugares inesperados, desertos longínquos à procura de uma louca bailarina - que roda sem cessar até cair na fofa areia. Não sei onde isso tudo vai dar... Sinto medo. Minhas ilusões ficaram guardadas em um caixa ornada de filamentos dourados e cristais negros, num tempo longínquo e imemorial. Um menino bonzinho me levou para longe, caminhando despretensiosamente por dias a fio, num deserto infinito. Então perdi meus melhores dias dentro de uma cordilheira labiríntica. Voltei arrastando correntes, com pés desconexos, que já não me conduziam a nenhum ponto. O erotismo era efervescente. Não recusava os prazeres oferecidos a mim. A timidez atrapalhava um pouco, mas bastava cair de boca no álcool e a transformação era nítida. Era um rapaz sedutor e surpreendentemente livre. Cedia aos apelos de quem requisitasse, independente de gênero. Nunca fui mesquinho, dividia meu afeto com quem estivesse a fim. Tinha o sonho de encontrar nos braços de alguém o idílio amoroso. Encontrei o afeto de cada dia em muitos braços, pernas e mãos vadias. Esquecidos a cada amanhecer. Os prazeres do sexo eram transitórios, tão efêmeros, que mal podia acreditar em sua existência. O desejo tinha que ser perenizado a cada dia, numa busca libertina de refinamento dos sentidos. Assim encontrei o esplendoroso encanto encarnado em um ser humano. Aos poucos o esplendoroso encanto foi se dissipando. Transformou-se em um alegre e vívido pesadelo. Enganei-me quase todos os dias, porque teimava em ser cego em meio ao tiroteio que me dilacerava. Nesse jogo descobri que havia perdido meu cetro e reinado. Comecei a gostar de sofrer. Era uma autopunição, sendo eu ao mesmo tempo advogado e juiz de mim mesmo. Meu prazer era estranho, às vezes, patético. Saí profundamente ferido e estilhaçado. Sinto que ainda o procuro em outros braços. Não sei amar, minha entrega é plena. Meu sentimento é delicado como uma borboleta azul e suave feito uma pétala de rosa. Nas horas melancólicas ouvia jazz, blues e bossa nova e chorava copiosamente. Conheci pessoas absolutamente especiais, doces e despidas de razão cartesiana. Donas de inteligência heterodoxa e autêntica. Afinei-me imediatamente. Fiz amigos e vivi protegido por esse doce elo. Senti-me amado e acolhido. Conheci a afeição, o desejo e o erotismo nestas relações. Descobri que o mundo é um caos, com incoerências e muito loucura, lendo a poesia de Rimbaud. Nem sempre minha mente suportou os limites deste caos rodopiante. Abrigava-me na filosofia, na literatura e nos braços de meus amigos. Data desta época um de meus primeiros amores: o teatro. Larguei tudo aos 15 anos e parti numa ribalta vagabunda, rumo a aventuras desconhecidas. Com o desejo apenas de divertir os outros e a mim próprio. Com bagagem parca – literatura, filosofia, algumas tintas e roupas para esconder minha nudez. Foi a essência da liberdade. Uma experiência única e fascinante. Eternizada. Arribávamos em pequenos vilarejos poeirentos do sertão encenando textos que contavam histórias universais. A platéia se amontoava à frente da humilde ribalta. Dávamos uma porção de sonho aquela gente com tão pouca chance de devanear, vivendo a crueza de uma vida desesperançada. Éramos muito bem tratados por todos. Trocamos experiências com pessoas iluminadas e voltamos repletos de alegria em nossas bagagens. Foram dias incertos, cheios de lirismo, doçura e a certeza de que é possível a transformação por meio da arte. A arte é uma forma de redenção! Nesses tempos pude transportar para as telas todos os meus anseios. Pintei em abundância e me senti redimido. “Acho fui curado de minhas dores e desencantos”, pensava. Pude desfrutar de minha própria solidão e me sentir totalmente livre e anônimo. À noite a trupe dançava ao redor da fogueira e jogávamos conversa fora. A companhia de meus amigos era absoluta e não sentia falta do conforto de casa. Mesmo despido de quase tudo – só tínhamos mesmo o básico – meus sentimentos eram de uma alegria transbordante, se comparada aos dias posteriores. Não me recordo de ter sentido algo tão sublime e verdadeiro, como naqueles dias. ******

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Existem em todo o homem, a todo o momento, duas postulações
simultâneas, uma a Deus, outra a Satanás. A invocação a Deus, ou
espiritualidade, é um desejo de elevar-se; aquela a Satanás, ou animalidade, é
uma alegria de precipitar-se no abismo